O papel do big data na medicina: Introdução
Há tempos, muito se discute sobre as mudanças que experimentaremos entre a inexorável marcha da tecnologia e todos os apetrechos que à acompanham. Vimos a entrada de vários dispositivos em nossas vidas, os quais hoje não vivemos sem, mesmo diante do fato de que ao crescermos, não os tínhamos. Vimos, mesmo que aos poucos, profissões antes completamente necessárias serem deixadas de lado e um novo conceito de profissionalização surgir, com cursos e disciplinas que 50 anos atrás não teriam ao menos base científica.
Mas a pergunta que nos fazemos e não conseguimos entender a magnitude de sua resposta, mesmo embora conhecida, é:
Até onde a tecnologia mudará nossas vidas? Até onde vamos chegar?
Poderíamos abordar essa indagação de diversas formas, das mais difíceis às mais simplórias, sem chegar num consenso ou sequer clarear nossas mentes. Entretanto, existe uma maneira de conseguir elucidar algo nesse dilema, basta-nos analisar aquilo que já vivenciamos e remar um pouco em direção ao confronto do que achávamos “seguro” do avanço tecnológico.
Nos próximos parágrafos, iremos fazer um mergulho em como uma profissão que existe há milénios está sendo balançada por esses novos conceitos e o que será de seu futuro.
A medicina tradicional
Pode-se dizer que a medicina é uma profissão que nos acompanha desde a antiguidade, tendo sido referenciada no código de Hamurabi que data de 1728-1686 a.C., porém vindo ainda de muito antes em outras sociedades, como por exemplo a medicina Ayurveda, que existe a cerca de 6000 anos e que já contava com psiquiatras, pediatras, dentre outras especialidades.
Devido à falta de contato entre paciente e médico, e à escassez de dados para serem analisados, se criou um ciclo de acompanhamento em que 30% das consultas são caracterizadas pelo paciente visitar o médico para descrever seu problema, o médico avaliar o histórico ou passar exames novos, o paciente realizar esses exames, pegar o resultado e por fim marcar uma nova consulta. Os restantes 70% são caracterizados pelo diagnóstico realizado exclusivamente através do histórico e exame físico, cabendo ao paciente apenas voltar para fazer o acompanhamento do quadro.
Esse mecanismo, embora eficaz no passado, contém uma série de problemáticas que serão discutidas mais profundamente neste artigo.
Paciente e sua memória
Quem nunca colocou em um bloco de notas ou em sua agenda o que vinha sentido ao longo dos dias para lembrar na hora de falar com o médico? Ou melhor, quem nunca foi ao médico e quando saiu lembrou que tinha esquecido de falar algo muito importante?
Se você já fez alguma das duas coisas citadas acima, você sabe como não se pode confiar muito na memória para lidar com assuntos tão importantes como a sua saúde. Muitas vezes, a omissão de um tópico em uma consulta pode acabar resultando em uma bateria de exames desnecessários ou até mesmo levar a um diagnóstico equivocado.
Do ponto de vista do médico, o outro lado desse cabo de guerra é a confiabilidade das informações do paciente. É um fato de que nem todos os pacientes cooperam, e muitas vezes, duvidar da informação do paciente é parte do trabalho do profissional da saúde.
Esse foi o caso que ocorreu com um colega meu, médico de um respeitado hospital da região metropolitana de Recife, onde a senhora MJ de 40-50 anos se apresentou com um quadro de hipertensão arterial sistêmica resistente. Embora ela tomasse 8 remédios diferentes diariamente, sua pressão chegava facilmente a 22×16. A primeira suspeita recaiu sobre a má aderência terapêutica, ou seja, a paciente não tomar os remédios, porém ela sempre foi muito efusiva em afirmar que tomava todos os remédios de forma regular. Após isso, vários testes dispendiosos foram realizados, incluindo tomografias, USG doppler de artéria renal, dosagem de catecolaminas, entre outros, e por fim, após nada ser encontrado, à colocaram em observação forçada, que é uma internação para ver se ela tomava os remédios. 8 anos se passaram com muitas visitas em especialistas e nada pôde ser encontrado, e os efeitos da pressão alta começaram a aparecer: problemas cardíacos e reais, com necessidade de diálise. Até que, em maio deste ano (2018), uma nova internação é realizada para a realização de um novo teste, uma cintilografia com MIBG, para ver um paraganglioma. Resultado: a paciente começa a ter hipotensão e os médicos rapidamente concluíram que ela não tomava seus remédios esse tempo inteiro. Até nos momentos que ela era internada para observação, ela escondia os comprimidos na boca para posteriormente jogar fora. Por isso a pressão dela era persistentemente alta.
Medições instantâneas
Uma das principais falhas do modelo atual é a utilização de exames pontuais na vida do paciente, onde não se há um acompanhamento contínuo holístico do dia-a-dia do indivíduo, tirando-se apenas “fotografias” ou “instantâneos” do estado atual. Esse conceito fica mais claro ao se analisar a figura 2, que demonstra variações não sendo capturadas devido ao espaçamento entre os testes, similar ao que um exame laboratorial iria demonstrar como resultado:
No gráfico é possível ver que os momentos onde foi realizada a medição (marcado de vermelho), embora espaçados e representando praticamente o mesmo valor, não conseguem evidenciar o que realmente aconteceu durante todo o processo. Assim como esse exemplo hipotético, é normal que a quantidade de glicose no sangue de um paciente, entre outras taxas, muda de acordo com o ciclo circadiano de um indivíduo, assim como variem por causa da alimentação, exposição a fatores externos ou até mesmo uma doença em estágio de incubação.
É preciso pontuar que muito já foi realizado para mitigar esses efeitos, desde procedimentos antes de se fazer o exame, até métodos estatísticos capazes de identificar possíveis erros aleatórios nos valores obtidos pelos exames. Porém, ainda há uma distância muito grande para chamar esses problemas de “resolvidos”.
Tempo de espera por resultados ou por consultas
Outro fator relevante do ponto de vista do paciente é o tempo de espera entre ir no médico uma primeira vez para a consulta, marcar os exames nos respectivos laboratórios, realizar os exames, esperar pelo resultado, marcar o retorno ao médico e fazer a segunda consulta com o médico. Na melhor das hipóteses, esse processo só será realizado uma vez, onde já em posse dos exames, o médico será capaz de fazer o diagnóstico e determinar o tratamento.
Infelizmente, boa parte das interações paciente-médico se darão em mais de uma repetição desse processo, cabendo ao paciente visitar várias vezes o médico para conseguir se determinar qual realmente é a enfermidade e acompanhar a evolução do tratamento.
Conclusão
Portanto, após avaliarmos as falhas na interação médico-paciente, como a falta e a baixa confiabilidade das informações por parte do paciente, a pequena amostragem dos dados e o alto tempo de espera entre consultas e exames, temos que estas problemáticas acabam por contribuir para a escassez de informações que possam auxiliar o profissional da saúde no diagnóstico. É aí que entra o Big Data, que com o uso de dispositivos IoT, é capaz de captar dados de uma forma holística e contínua, integrando diversas informações e sendo, portanto, capaz de aspectos pontuais e gerais da saúde do paciente de maneira completa e segura.
Nos meus próximos artigos aqui no blog da Salvus.me irei abordar melhor que tipo de vantagem o Big Data vem trazendo para a medicina, o que isso representa para a vida do paciente, como essas tecnologias vão dar forma ao profissional da saúde do futuro e o que mais podemos esperar.